Maria Clara Paixão de Sousa é professora da Universidade de São Paulo, junto ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, desde 2008, e líder do grupo de pesquisas
This is the source
As tecnologias digitais de difusão da informação transformaram profundamente o
trabalho das
Material conditions of digital text diffusion and their impact on new forms of reading.
A Prosa do mundo)
preâmbuloparte de algumas ideias delineadas originalmente em um post publicado em https://humanidadesdigitais.org/2012/04/10/ler-a-prosa-do-mundo-hoje, do qual também retomei o título para o presente artigo,
Ler a prosa do mundo hoje. Como já apontava ali, esse título faz homenagem ao famoso ensaio de Michel Pêcheux,
Começo essa reflexão trazendo uma anedota bastante pessoal – que, espero, em tempo se justificará como ilustração prévia para o debate que proponho. Vamos à história: a primeira vez que li
Mais recentemente, em uma nova tentativa com
Animei-me então a elaborar para os meus alunos (para quem, afinal, estava
preparando a leitura do texto) uma pequena evidente
que tudo pode
ser encontrado
; que tudo pode ser visto
; que tudo está
aqui
, na ponta dos nossos dedos.
Naquele dia, talvez um pouco espantada pela naturalidade com a qual meu pequeno gabinete virtual de maravilhas foi recebido, pensei em como, por contraste, devem ter sido raros os leitores que, desde a publicação de
Entretanto – quais os efeitos dessa leveza no levantar o olho do livro? Essa profusão de informações imagéticas contribui para um aguçamento do entendimento da obra, ou de fato impede o olhar de concentrar-se nas palavras do autor? Pois – o olho muitas vezes não perde o caminho de volta, quando o dedo toca a tela iluminada? Horas depois, não vamos perceber que já não estamos mais lendo
Aldrovandi, Dragons?
Mais que isso. Quando preparamos para nossos alunos pequenas coleções de
maravilhas, e de fato quando damos ao mundo nossos novos produtos de pesquisa –
nossas coleções coloridas de iconografias em torno de obras clássicas, com
finalidade pedagógica; nossas constelações de textos antigos, dispersos por
séculos no Velho Mundo, mas agora unidos em uma
Borges não acrescenta nenhuma figura ao atlas do impossível;
não faz brilhar em parte alguma o clarão do encontro poético; esquiva apenas
a mais discreta, mas a mais insistente das necessidades; subtrai o chão, o
solo mudo onde os seres podem justapor-se. Desaparecimento mascarado, ou,
antes, irrisoriamente indicado pela série abecedária de nosso alfabeto, que
se supõe servir de fio condutor (o único visível) às enumerações de uma
enciclopédia chinesa... Numa palavra, o que se retira é a célebre "tábua de
trabalho"; e, restituindo a Roussel uma escassa parte do que lhe é sempre
devido, emprego esta palavra "tábua" em dois sentidos superpostos: mesa
niquelada, encerada, envolta em brancura, faiscante sob o sol de vidro que
devora as sombras — lá onde, por um instante, para sempre talvez, o
guarda-chuva encontra a máquina de costura; e quadro que permite ao
pensamento operar com os seres uma ordenação, uma repartição em classes, um
agrupamento nominal pelo que são designadas suas similitudes e suas
diferenças — lá onde, desde o fundo dos tempos, a linguagem se entrecruza
com o espaço
Naquele lugar onde "desde o fundo dos tempos, a linguagem se
entrecruza com o espaço
– que aspecto tem, hoje, nossa "tábua de trabalho"
? Por sobre que mesa ordenamos e
damos sentido aos nossos escritos; que superfície niquelada, encerada, envolta em brancura
forma a base sobre a qual
podemos espalhar nossas leituras? Que quadro nos permite hoje operar uma
ordenação dos seres e das coisas
? Em que espaço lemos a prosa do
mundo
, hoje?
Aqui interrompo minha anedota, pois não tenho respostas para essas perguntas. Mas
me parece certo que vemos se instaurar, no estudo e no ensino das Humanidades,
uma nova forma de
Em 2001, John Unsworth apontava para a profundidade das mudanças epistemológicas
em jogo nas Humanidades frente ao contato com as tecnologias computacionais
destacando, entre outros fatores, seus impactos sobre a formação de novos
humanistas. Inscritas na lógica digital, as novas gerações encontrariam formas
inteiramente novas de relacionarem-se com a documentação deixada pelas gerações
passadas, fazendo transformarem-se as Humanidades
:
The assertion of this paper is that the methodology known as
knowledge representation has profound implications for humanities computing,
and through humanities computing, has the potential to change the way
humanities scholarship is done, to change the nature of graduate education
in the humanities, and to change the relationship between the humanities and
other professions, let alone other disciplines. I believe that knowledge
representation has already produced important new research, and will, in the
future, bring us new insights into what we know about the human record, and
how we know it
"A proposta deste artigo é a de que a metodologia
conhecida como representação do conhecimento tem profundas
implicações para a computação em humanidades, e por meio da
computação em humanidades, tem o potencial de mudar o modo como o
fazer acadêmico nas humanidades é realizado, mudar a natureza da
formação nas humanidades, e mudar a relação entre as humanidades e
outras profissões, que dirá outras disciplinas. Acredito que a
representação do conhecimento já produziu pesquisas novas
importantes, e que trará, no futuro, novos olhares sobre o que
sabemos do registro humano, e sobre como o sabemos"; minha
tradução.
Em 2008, Gregory Crane, David Bamman e Alison Babeu sugeriam que as novas
ferramentas digitais à disposição dos pesquisadores nas Humanidades fariam
vislumbrar a criação de "um espaço dinâmico para a vida
intelectual
que equivaleria a um passo revolucionário na história da
leitura:
The tools at our disposal today, primitive as they may appear
in the future, are already adequate to create a dynamic space for
intellectual life as different from what precedes it as oral culture differs
from a world of writing
As ferramentas atualmente a nosso dispor,
por primitivas que poderão parecer no futuro, são já adequadas para
criar uma esfera dinâmica para a vida intelectual que é tão
diferente daquilo que a precede como a cultura oral difere do mundo
da escrita
; minha tradução.
Como muitos autores que enxergaram no impacto das tecnologias computacionais um
divisor de águas na história das Humanidades, Crane et al (2008) e Unsworth
(2001) falam a partir de um campo específico das Humanidades que, me parece, foi
particularmente sensível à interferência das técnicas eletrônicas: o trabalho
com o texto, na chave mais filológica ou na chave mais linguística. Baumann
& Crane (2010), por exemplo, fazem explicitamente essa ligação direta entre
o deparar-se com um novo espaço intelectual
e o
trabalho com
Treebanks are collections of text with extensive
morphological, syntactic and similar categories of annotation and are
familiar instruments for corpus and computational linguistic research. In
building Treebanks for historical languages such as Greek and Latin, we
found a new intellectual space that combined elements from computational and
corpus linguistics and from the ancient discipline of
philology
Treebanks (corpora anotados) são coleções de
textos com extensas categorias de anotação morfológica, sintática e
similares, e constituem instrumentos familiares na pesquisa de
corpus e de linguística computacional. Ao construir corpora anotados
para línguas stóricas como o grego e o latim, encontramos um novo
espaço intelectual que combinava elementos da linguística
computacional e de corpus e da antiga disciplina da filologia
;
minha tradução.
Não é surpreendente encontrarmos as principais reflexões sobre a profundidade do
impacto do digital nas Humanidades nas áreas que trabalham de modo fundamental
com
Digitus Dei est hic!,
o dedo de Deus está aqui!
Como venho propondo em alguns trabalhos recentes, de uma perspectiva
Essa é uma diferença material fundante, não uma nova forma para um mesmo
objeto. Vemos isso já no plano mais básico da representação linguística
artificial contida no texto digital, a a, b, c
...), e as programações
computacionais operam, nos processadores de texto, manipulando essas
remissões lógicas de modo a compor uma representação que é interpretada,
humanamente, como um
A mágica aqui – o dedo de Deus
no dígito – está nas possibilidades de
manipulação que a codificação digital do texto abre para o trabalho
filológico e linguístico; e o instrumento no qual essas possibilidades se
evidenciam mais claramente é, talvez, o corpus eletrônico anotado. De
partida, a propriedade representação artificial da análise linguística
. A partir de
Unsworth (2006), sugeri que o trabalho de anotação depositado sobre os
textos na formação de um corpus eletrônico é uma das instâncias da chamada
É em cima da nossa anotação – ou seja, em cima dessa nossa
Significa dizer, fundamentalmente, que preparar um texto para ser processado
automaticamente por uma máquina é construir a possibilidade do processamento
computacional de sua interpretação (linguística, estrutural, estética).
Nesse ponto já podemos compreender um pouco do fascínio de um linguista
diante dessa metodologia: como sugeri em Paixão de Sousa (2014), a anotação
sintática, por exemplo, nos permite consistência tola
exigida pelo computador
(the
). No que toca especificamente o trabalho do linguista,
essa exigência de uma consistência absoluta torna o trabalho de anotação
particularmente interessante – já que, lembro, a linguística é uma área das
humanidades na qual a foolish consistency
that the computer
requiresconsistência tola
afeta a análise linguística pelo
seu avesso: consistência tola
, nos impede
essa intuição, e nos faz, pelo avesso, ver onde ela atua. Assim, na batalha
cotidiana frente à burrice fundamental do autômato, terminamos questionando
radicalmente nossas categorias naturais, sempre tão ricas em compreender o
ambíguo, o fluido, o que não é claro, o que não se repete jamais.
E com isso chegamos ao coração do problema – pois essa incursão pelo mundo da
lógica fria de uma máquina que calcula sequências de números termina por
transformar, indelevelmente, nosso olhar sobre o texto. Os
Saindo da linguística, mas ainda permanecendo no território dos estudos
textuais, esse reajuste hermenêutico no uso das tecnologias computacionais
está também presente em outras áreas de estudo. No campo dos estudos
literários, a possibilidade de se reconhecerem padrões que não são possíveis
a
Dessa forma, o trabalho computacional, nas disciplinas centradas no texto,
cria uma nova
A nova forma de interpretação e leitura aberta pelo meio digital constrói-se
em meio a uma tensão entre a restrição colocada pelos limites lógicos e
Para justificar o meu uso do termo explosão
, vejamos três dados
brutos. Primeiro: hoje, 1º de março de 2018, devem existir na internet 4.24
bilhões de páginas na internet
,
e portanto os números, inferidos indiretamente, correm o risco de
estarem subestimados.páginas
no
sentido (emulatório) de páginas-web
(considere-se que, segundo um
curioso experimento feito em 2015, para se imprimir todo o conteúdo da
web
naquele ano gastar-se-iam 305.5 bilhões de páginas de fato,
ou seja, páginas de papel; cf. Dewey, 2015).
Em meio a esse volume, existiam, em 2014, 114 milhões de documentos que
podem ser considerados acadêmicos
, segundo Khabsa (2014), apenas na
língua inglesa (desconheço pesquisa semelhante que vá além da documentação
em inglês). Para tornar a questão um pouco mais próxima da nossa reflexão
sobre as Humanidades, até 2012, 23 milhões de documentos (entre livros,
gravuras e manuscritos) haviam sido digitalizados apenas nas bibliotecas
institucionais europeias, segundo o levantamento de Peckel (2012) – o que,
por sinal, ainda correspondia então a cerca de 10% do patrimônio físico
desses acervos (levando a crer que, a permanecerem as condições atuais, esse
número só tende a crescer nos próximos anos).
Do muito que se poderia discutir a partir desses dados bastante objetivos,
faço apenas uma pergunta: como vamos chegar a buscas
.
Noutros termos: o arquivo textual disponível hoje na internet
se
diferencia das outras formas de arquivo por se organizar fundamentalmente a
partir de uma lógica artificial (na qual, a partir de sua concepção, um
algoritmo ordena lidos
no
mundo hoje. Esta contingência, me parece, se soma àquela outra, mais
específica (da formação da leitura
Desconfio que vivemos um momento paradoxal, em que nunca tivemos tantos
textos facilmente acessíveis para ler, mas que tornou impossível
da
nossa área
? Quais são os textos fundamentais
? Quais são as
boas fontes? Em outras palavras – o que é, hoje, o Arquivo
?
Podemos compreender Arquivo
em diversos sentidos – aqui, estou
centralmente ocupada com um conceito discursivo, do Arquivo
compreendido como a construção social de uma ordenação da memória e da
leitura, e, portanto, sujeito à historicidade; em particular, remeto ao
conceito trabalhado por Michel Pêcheux em
arquivoem sua dimensão discursiva mais ampla de "
campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão, o autor discute os procedimentos sociais e teóricos envolvidos na construção (e na
leitura) dos arquivos em diferentes momentos da história e na atualidade – neste caso, em particular frente aos desafios trazidos pelas tecnologias computacionais. Para ele, então,
...nos encontramos diante de uma nova divisão do trabalho
de leitura, uma verdadeira reorganização social do trabalho intelectual,
cujas conseqüências repercutirão diretamente sobre a relação de nossa
sociedade com sua própria memória histórica
A ideia do Arquivo
como um objeto social construído a partir de uma
divisão do trabalho
de leitura inspira fundamentalmente a
reflexão aqui proposta: preocupa-me centralmente a posição dos humanistas na
divisão do trabalho de construção do Arquivo hoje (nos termos de Pêcheux), e
é nesse sentido que se colocam as perguntas, aqui sugeridas, sobre o modo
como as tecnologias computacionais de difusão do texto interpelam os
humanistas em seus ofícios tradicionais de leitores
do Arquivo.
Considerando, ainda, que a dispersão e a porosidade dos objetos-texto é
parte fundante da natureza material do texto digital, não nos distanciamos,
nesse segundo problema, das questões em torno da materialidade do texto
digital, que condicionavam o primeiro). Como argumentei em Paixão de Sousa
(2013), a condição de transmissão e circulação de uma forma de texto faz
parte de sua definição material, e a condição de circulação do texto digital
é essa: volumosa; dispersa; porosa. Isso traz consequências para a leitura –
em particular se entendemos leitura
no sentido proposto por Pêcheux,
pois
a difusão digital, pulverizando o primado da autoridade
sobre o objeto, desintegrou o portal regulador da circulação dos corpos.
Nesse novo ambiente, o erudito pode construir novas esferas de
circulação do saber; mas outros construirão outras esferas, em que
circularão outros saberes. Assim, os estudiosos especializados da
leitura e da construção do
arquivo
(no sentido de Pêcheux, 1994)
podem passar a se ver acompanhados de novos leitores e construtores do
arquivo. Pois o saber escrever
(aqui no sentido expandido, não de
codificar a escrita, mas de escrever o arquivo, inscrevendo a memória)
saiu das nossas mãos, mais radicalmente do que saíra das mãos dos
escribas diligentes a serviço dos eruditos medievais para passar para as
mãos (máquinas) dos fabricantes de livros. Saiu de nossas mãos, de todas
as mãos, e de todas as máquinas: descorporificou-se
Assim, essa nova forma de difusão do texto – nova forma de sua produção,
circulação e leitura – ao conformar um novo objeto-texto, incorpóreo,
transforma nossa forma de estarmos
I think we are arriving at a moment when the form of the
attention that we pay to primary source materials is shifting from
digitizing to analyzing, from artifacts to aggregates, and from
representation to abstraction
Valendo-se do conceito de escondem
outros – formando, assim, o cânone
de cada
momento. Mais que a ideia de cânone, ou de valoração cultural, a Unsworth
interessa debater as forças tecnológicas que moldam nossa relação com as obras
que, graças ao fato de terem sobrevivido ao processo descrito por Kermode,
chegaram até nós
como fontes primárias (de fato: as obras que seguem
merecendo alguma forma da nossa atenção como fontes de estudo). É nesse contexto
que o autor coloca a ideia de texto-ferramenta
).
Entretanto, para ele, nossa forma de atenção ao texto digital estaria hoje se
deslocando de modo a enxergar para além do texto-ferramenta, passando a ver (e
criar) o
Entretanto, esse breve resumo da reflexão proposta por Unsworth (2006) em torno
do folhear
na tela – quando estamos diante de uma
máquina que apenas nos envia sinais para nos convencer de que são textos. É
nesse sentido que uso, acima, o termo alienante
: estamos imersos em uma
lógica de produção textual cujas etapas fundamentais, em termos materiais,
escapam à nossa percepção; e essa dissimulação faz parte da lógica interna do
sistema de produção material do texto.
É razoável propor que enquanto estivermos presos a essa emulação, não
conseguiremos entender a mudança na forma de atenção ao texto, e nos sentiremos
perdidos, enquanto leitores, enquanto organizadores, e enquanto produtores do
texto
. Como leitores, aqui estamos diante daquilo que nos é feito ver
como textos
; assim é que temos por diante vamos ler as coisas
, quando o que mais fazemos
é selecionar, das telas iluminadas dos nossos computadores, pequenos trechos,
aqui e ali, do que outros escreveram e que conseguimos a
internet
nos faz chegar em casa todos os dias.
É também em meio a esse dilúvio informacional que ainda tentamos nos equilibrar
como organizadores e editores do texto, na nossa tradicional função de
ēditor
, de
ēdere
, expulsar, colocar para fora
). Não os textos que nós
mesmo escrevemos – mas sim, a tradição da nossa cultura escrita, de que nós,
como humanistas, nos arvoramos como guardiões e transmissores. Vamos lembrar que
os humanistas construímos os instrumentos para a humanidade
Volto neste ponto à minha anedota inicial. Quando, em 2012, preparava meu gabinete de maravilhas para acompanhar os trabalhos de um grupo de leituras em torno da
a internetpor dias a fio, estava na
Foucauldianapara os alunos teria me poupado imensos trabalhos; meu garimpo, portanto, não parece ter sido muito eficiente. Em minha defesa, em experimento recente, ao buscar pelo termo
Foucaultno buscador Google, a máquina me respondeu com mais de 26 milhões de resultados – e nenhum deles era a
Pois – qual é, afinal, a Google
. É no Google
, não nas bibliotecas, que os leitores procuram
textos.internet-biblioteca
é falha, discutindo os problemas do acervo
percirculante
e da angústia do catalogador, e defendendo que aos
humanistas nos resta dominar as novas formas de ordenação do texto, ou
deixar que outros a dominem – e nessa segunda hipótese, abrir mão do coração
do nosso trabalho e, desconfio, da nossa relevância social.
Na outra ponta do dilúvio informacional estamos nós como produtores
desses
estranhos objetos que emulam textos, que se multiplicam como vírus pelo mundo em
forma de sinais elétricos, e que enviamos na esperança de que algum dia alguém
vai sentar em uma mesa e, efetivamente,
Digital technology is hardly new in classics: there are full
professors today who have always searched large bodies of Greek and Latin,
composed their ideas in an electronic form, found secondary sources on-line
and opportunistically exploited whatever digital tools served their
purposes. Nevertheless, the inertia of prior practice has preserved intact
the forms that evolved to exploit the strengths and minimize the weaknesses
of print culture: we create documents that slavishly mimic their print
predecessors; we send these documents to the same kinds of journals and
publishers; our reference works and editions have already begun to drift out
of date before they are published and stagnate thereafter; even when new,
our publications are static and cannot adapt themselves to the needs of
their varying users; while a growing, global audience could now find the
results of our work, we embed our ideas in specialized language and behind
subscription barriers which perpetuate into the twenty-first century the
miniscule audiences of the twentieth
A tecnologia digital não é
novidade nos estudos clássicos: há hoje professores plenos que
sempre pesquisaram repositórios de textos gregos e latinos,
compuseram suas ideias em forma eletrônica, encontraram fontes
secundárias online, e que exploraram de modo oportunista quaisquer
ferramentas digitais que servissem seus propósitos. Entretanto, a
inércia das práticas pregressas fez preservarem-se intactas as
formas de evoluíram para explorar as vantagens e minimizar as
desvantagens da cultura impressa: criamos documentos que mimetizam
escravizadamente seus predecessores impressos; enviamos esses
documentos para os mesmos tipos de periódicos e editoras; nossas
obras de referência e nossas edições já começam a se tornar
obsoletas no momento em que são publicadas e daí para frente ficam
estagnadas; mesmo quando novas, nossas publicações são estáticas e
não conseguem se adaptar às necessidades de seus usuários variados;
enquanto um público crescente, global, poderia agora encontrar os
resultados do nosso trabalho, nós encapsulamos nossas ideias em
linguagem especializada e por trás de barreiras de assinaturas que
fazem perpetuar, para o século vinte e um, o minúsculo público
leitor do vinte.
; minha tradução.
Estamos perpetuando, nó século 21, o minúsculo público
leitor do 20
– este alarme de Crane et al. (2008) tem consequências
mais importantes do que pode parecer à primeira vista. Pois se há de um lado,
como vimos, o problema de estarmos afogados no mundo da informação e não
conseguirmos nos mover direito dentro dele (como se, na analogia da biblioteca
de concreto e do livro de papel, estivéssemos caminhando em círculos, exaustos,
pelos corredores de uma biblioteca grande demais para as nossas pernas), de
outro lado, e de modo correlato,
O que nos falta, desconfio, é darmos o passo final na radical transformação da
nossa maneira de enxergar esses nossos objetos de trabalho, os textos – e que
nos leva de volta ao falar com seus leitores
, nos termos de Crane et al.
(2008). Esses autores defenderam que há uma diferença radical a separar o mundo
da difusão digital e o mundo do papel, como já mencionamos; e trazem também um
ponto central para este momento final da nossa conversa: a diferença entre o
texto como objeto fixo
(no papel) e o texto como objeto móvel
(no
ambiente digital). É essa, para eles, a singularidade do texto no ambiente
digital – e a exploração ativa dessa singularidade deveria ser a prioridade da
produção textual acadêmica hoje: The question that we face
is much deeper than the challenge of producing more or, preferably, better
articles and monographs. We must more generally ask what kind of space we
wish to produce in which to explore the linguistic record of humanity –
whether we are contemplating the Odyssey, administrative records from Sumer,
or tracing mathematical thought through Greek and Arabic sources. More
important perhaps than the question of what we can do may be the opportunity
to redefine who can do what – to open up intellectual life more broadly than
ever before and to create a fertile soil in which humanity can cultivate the
life of the mind with greater vigor and joy.
A questão que
se nos depara é muito mais profunda que o desafio de produzir mais, ou,
de preferência, melhores artigos e monografias. Precisamos, de modo mais
geral, nos perguntar que tipo de espaço queremos produzir para explorar
o registro linguístico da humanidade – quer estejamos contemplando a
Odisséia, os arquivos administrativos da Suméria, ou investigando o
pensamento matemático por meio de fontes gregas ou árabes. Mais
importante, talvez, do que a questão sobre o que podemos fazer, pode ser
a oportunidade de redefinirmos quem pode fazer o quê – de abrir a vida
intelectual como nunca antes, e de criar um solo fértil onde a
humanidade poderá cultivar a vida da mente com maior vigor e
alegria.
; minha tradução.
Assim, seria interessante que fossemos capazes de absorver as novas formas de
circulação do texto na nossa produção acadêmica, abandonando os limites da
emulação do impresso, para produzir formas textuais que possam ser efetivamente
organizadas, encontradas, e abrir a vida intelectual como nunca antes
. O
problema, como coloca Eggert (2010) de modo extremamente contundente em
discussão correlata, é que, nesse processo, tememos ver os bárbaros invadirem
nossa cidadela: ...this vision of a common, interactive type
of scholarship and readership that democratically puts the reader in a
box-seat while also empowering the scholar to make and sign more expert
editions, doing much of the discovery work for us, is a very attractive
prospect. We should not fear the barbarians entering the gates of the
scholarly city. They have usually got less arduous things to do anyway, and
even when they do decide to interfere (as in contentious passages from books
of the Bible whose wordings they object to) or even if they are empowered to
make their own editions, my response is: Let them!
... essa
visão de um tipo de leitura e produção acadêmica pública e interativa
que democraticamente coloca o leitor num camarote e ao mesmo tempo
empodera o estudioso a produzir e assinar mais edições especializadas,
fazendo boa parte do trabalho de descoberta para nós, é uma perspectiva
muito atraente. Não devíamos temer os bárbaros passando pelos portões da
cidadela acadêmica. Eles normalmente têm coisas menos trabalhosas a
fazer, de qualquer maneira; e mesmo quando decidem interferir (como no
caso de passagens controversas da bíblia a cujos termos eles apresentem
objeções), ou mesmo se se sentirem encorajados a produzir suas próprias
edições, minha resposta é: Que façam!
; minha tradução.
Enquanto temermos os bárbaros
– debatendo nossas premissas, e (o horror!)
apontando lapsos nas nossas transcrições – não nos aventuraremos nos
experimentos da textualidade móvel vislumbrados por Crane et al. (2008), nem a
qualquer tipo de leitura e produção acadêmica pública e
interativa
tal como proposto por Eggert (2010), e, muito menos, ao
Arquivo
no sentido de Pêcheux (1994[1982]) – ou seja: já
não seremos aqueles que inscrevem
No começo desta conversa, entre muitas perguntas, questionava-me como podíamos ler a
coisas, inspirada pela experiência marcante da leitura de
tábua de trabalhoagora não é um espaço no mundo físico: nela, potencialmente, podem se encontrar todos os livros, todas as imagens, todas as palavras, e todas as coisas do mundo.
De um ponto de vista discursivo, como argumentei, vemos instaurarem-se assim
novas formas de leitura que transformam as
Os desafios colocados por esta nova conformação das Humanidades frente às
tecnologias de difusão digital da informação vão muito além do que o debate
sobre as chamadas hispanohablante
, mesmo entre pesquisadores cujos trabalhos envolvem
intenso uso de tecnologias computacionais em humanidades. Assim, poderíamos
aproveitar alguns dos apontamentos críticos sobre as humanidades digitais para
essa reflexão mais ampla, em particular os que têm levantado a importante
questão do anglocentrismo e da desigualdade dentro do campo (Fiormonte, 2012, 2014; Dacos, 2013). Quanto àqueles que
tem abordado as humanidades digitais como uma tendência passageira
Para finalizar, sugiro que precisamos compreender essa nova forma da ordem do
mundo dos textos, para sermos – os Arquivo
, nos
termos de Pêcheux (1994[1982]). Esta é a encruzilhada em que nos encontramos,
como resultado de uma transformação profunda na natureza do nosso instrumento
principal de trabalho, o objeto da nossa mais dedicada atenção – o texto. Em
alguns casos, não só o texto, mas o texto antigo, preservado dos efeitos do
tempo e trazido até nós por diferentes modos de difusão (e formas de atenção)
por milênios – e que ainda hoje, me parece, é nossa tarefa preservar (e
explicar, e organizar, e trazer à luz). Independente dos rumos de cada campo de
estudos específico no interior das Humanidades, o texto nos está chegando, e
continuará a nos chegar, na forma digital – nossos documentos, nossos objetos
de atenção
, estão sendo rematerializados em arquivos eletrônicos que
armazenam sequências de números. Isso levou alguns autores a enxergar, de fato,
uma revolução documental, num processo de Lobjet texte ici désigné
nest pas un objet purement sémiotique, ce nest pas seulement un ensemble
de codes ; cest un objet fabriqué, artisanalement et/ou industriellement
(dans le régime des médias informatisés par un mixte des deux), doté de
propriétés matérielles, inscrit dans un certain type déchange
Cabe a nós decidir que postura queremos ter diante disso: se queremos ser
afogados pelo dilúvio da transformação material (aparentemente ainda crescente)
dos milhões de documentos
(i.e., arquivos de informações numéricas)
dispersos em bancos de dados codificados, ou se queremos compreender as
condições tecnológicas e históricas dessa rematerialização, e ressignificá-la
dentro das nossas disciplinas – e talvez com isso, reversamente,
ressignificarmos nossas disciplinas, absorvendo as novas formas de trabalhar o
texto. A incursão ao reino da técnica computacional, assim, demanda das
Humanidades uma autoanálise crítica, já que nos obriga a fiar com novas fibras
aquele fio com que se forma o tecido do trabalho das ciências humanas
: o
fio dos nossos olhares de leitura e dos nossos mecanismos interpretativos.
Resumo. Nesse texto proponho uma reflexão sobre alguns efeitos trazidos pelas
condições materiais de difusão do texto digital para as Humanidades, em
particular no que remete a novas formas de leitura e de ordenação da leitura.
Partindo de observações sobre a dispersão do texto no meio digital, investigo
materialmente as formas de produção e ordenação do texto nesse meio pontuando
como singularidade fundante a inclusão de uma etapa lógica artificial em seu
processo de difusão (a partir de propostas já delineadas em Paixão de Sousa,
2017). Essa contingência, argumento, permite considerar a difusão digital como
etapa radicalmente nova na história da escrita e da leitura, em sentido
semelhante aos apontados por Pédauque (2004, 2006, 2007); Crane et al. (2008,)
Gradmann & Meister (2008), Chaudiron et al. (2008), e Baumann & Crane
(2010). Sugiro ainda (a partir do conceito de
This paper discusses the material conditions of digital text diffusion and its
effects for the Humanities, particularly as regards new forms of reading and new
forms in the ordination of reading. Observing the characteristic dispersion of
text in the digital medium, I investigate the forms of production and ordering
of digital texts from a material perspective, pointing out the inclusion of an
artificial logical stage in the text diffusion process as the fundamental
singularity of this medium (based on proposals already outlined in Paixão de
Sousa, 2017). This contingency allows us to consider digital text diffusion as a
radically new stage in the history of writing and reading, in a similar sense as
pointed out by Pédauque (2004, 2006, 2007); Crane et al. (2008,) Gradmann &
Meister (2008), Chaudiron et al. (2008), and Baumann & Crane (2010). Rested on
the concept of forms of attention
in Unsworth (2006), I also suggest that, in
shaping new forms of reading, this change in the material character of the text
profoundly alters traditional work in the Humanities, and establishes a new
discursive conformation for the field. Finally, I argue that this new condition
deserves critical consideration in all different areas of the Humanities, but
particularly in those that take the text
as their central object of
attention.
Material conditions of digital text diffusion and their impact on new forms of reading.
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